A Execução Penal como Espaço de Resistência: Entre a Legalidade Garantista e a Realidade Punitiva
Edson Joaquim de Almeida Filho
4/30/20253 min read


Introdução
A execução penal representa, por excelência, a fase mais invisível e negligenciada do processo penal. Enquanto o inquérito policial e a instrução processual recebem atenção midiática e judicial, o cumprimento da pena é relegado a um plano quase subterrâneo, onde a legalidade se dilui entre rotinas carcerárias e práticas estatais de exclusão. A Lei de Execução Penal (LEP), embora concebida sob um viés humanista e garantista, permanece como um documento de intenções em contraste gritante com a realidade prisional brasileira. É nesse abismo entre norma e prática que a execução penal se converte em um verdadeiro campo de resistência jurídica e política.
1. A Lei de Execução Penal e a Constituição de 1988: uma promessa de cidadania
A promulgação da LEP (Lei nº 7.210/1984) ocorreu em um momento de transição democrática, antecipando, inclusive, os princípios constitucionais de 1988. Inspirada em ideais ressocializadores e de respeito à dignidade da pessoa presa, a lei estabelece diretrizes claras: progressividade, individualização da pena, direito à saúde, à educação, ao trabalho, à assistência social e jurídica. No entanto, mais de 40 anos após sua entrada em vigor, a maioria dessas garantias permanece como norma programática não implementada.
A Constituição Federal consagra o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e a vedação a penas cruéis (art. 5º, XLVII), impondo um novo paradigma ao sistema penal. A execução da pena deve estar em consonância com esses valores, sob pena de se converter em prática inconstitucional. Contudo, a realidade dos presídios brasileiros expõe um Estado que descumpre sistematicamente seus deveres constitucionais.
2. O sistema prisional como tecnologia de gestão da miséria
O crescimento exponencial da população carcerária, que hoje ultrapassa os 830 mil presos, segundo dados do CNJ (2024), não pode ser compreendido apenas sob a ótica da criminalidade, mas como parte de um projeto político de controle social. O sistema penal não pune de forma igualitária: ele seleciona. Negros, pobres, jovens e periféricos compõem o perfil majoritário das pessoas presas, evidenciando o viés estruturalmente seletivo e racista da justiça criminal.
Na fase de execução, esse viés se manifesta em várias formas: dificuldade de acesso à progressão de regime, morosidade na análise de benefícios, precariedade das defensorias públicas e ausência de estrutura para cumprimento de medidas alternativas. A execução penal, nesse contexto, torna-se não apenas um mecanismo de cumprimento da pena, mas um instrumento de prolongamento do castigo e da exclusão.
3. A jurisdição da execução: garantismo ou gestão burocrática da pena?
A atuação judicial na execução penal é, muitas vezes, marcada por um formalismo que contrasta com os princípios constitucionais. Juízes de execução acumulam milhares de processos, operando sob lógica burocrática que prioriza o controle da massa carcerária em detrimento da análise individualizada. O que era para ser uma fase garantista do processo — voltada à fiscalização da legalidade da pena e proteção de direitos — transforma-se em mera chancela administrativa do sofrimento prisional.
A atuação do Ministério Público, por sua vez, tende a reforçar o caráter punitivista da execução, muitas vezes resistindo à concessão de benefícios legais sob o argumento genérico de “reprovabilidade da conduta”. A Defensoria Pública, embora exerça papel fundamental na proteção dos presos, ainda é subdimensionada, com atuação limitada diante da imensa demanda.
4. A esperança nas brechas: educação, trabalho e projetos alternativos
Apesar do quadro desolador, há iniciativas que apontam caminhos possíveis. Programas de remição de pena pelo estudo, projetos de leitura nas prisões, trabalho em parcerias com o setor público e privado e unidades que funcionam com base no modelo APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados) demonstram que é possível uma execução penal mais humana e eficiente.
Essas experiências, no entanto, são pontuais e insuficientes para reverter a lógica estrutural do encarceramento em massa. O desafio é político e jurídico: romper com a cultura do encarceramento, fortalecer alternativas penais, garantir orçamento e estrutura adequada às varas de execução e assegurar o respeito aos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade.
Conclusão
A execução penal não pode ser entendida como um apêndice do processo penal, mas como parte essencial do projeto de justiça de um país. Onde não há legalidade na execução, não há Estado de Direito. O cárcere não pode ser espaço de esquecimento institucional, mas de responsabilidade pública. Enquanto a sociedade seguir indiferente ao que acontece “atrás das grades”, o direito penal continuará a ser ferramenta de seletividade, e não de justiça. Refletir criticamente sobre a execução penal é, portanto, um ato de resistência.
"O grau de civilização de uma sociedade pode ser medido pela maneira como tratam seus prisioneiros." - Fiódor Dostoiévski.