A Presunção de Inocência: Entre o Princípio Constitucional e a Realidade do Processo Penal

Edson Joaquim de Almeida Filho

4/29/20254 min read

A presunção de inocência é, talvez, um dos princípios mais citados — e menos compreendidos — do processo penal brasileiro. Consagrada no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988, a regra estabelece que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Mais do que uma formalidade jurídica, trata-se de uma cláusula fundamental de proteção individual. Um verdadeiro contrapeso ao poder punitivo do Estado, voltado à contenção de abusos, à garantia de julgamentos justos e à promoção de um processo penal que respeite as liberdades democráticas.

Contudo, ao longo dos últimos anos, esse princípio tem sido alvo constante de tensionamentos — por vezes deslegitimado pela opinião pública, desrespeitado por decisões judiciais e atacado por narrativas políticas que associam garantismo penal a impunidade.

Neste artigo, proponho uma reflexão crítica: como está a presunção de inocência no Brasil de hoje? Estamos, de fato, respeitando sua essência constitucional ou a estamos relativizando em nome de interesses conjunturais?

1. Origem e Fundamentação

A presunção de inocência não é uma invenção brasileira. Sua origem remonta à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e foi posteriormente incorporada a diversos tratados internacionais, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 14.2) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica, art. 8.2), dos quais o Brasil é signatário.

Seu fundamento é ético e jurídico: ninguém pode ser tratado como culpado sem que haja prova suficiente e julgamento regular. Essa ideia atua como escudo contra arbitrariedades e é a base para um processo penal democrático, em que a dúvida deve sempre favorecer o acusado (in dubio pro reo).

2. O Ônus da Prova e a Inversão Fática

Presumir inocência implica que o ônus da prova recai exclusivamente sobre o acusador — em regra, o Ministério Público. Isso quer dizer que é o Estado que deve demonstrar, por meio de um conjunto de provas robustas e legítimas, que o réu praticou determinada infração penal.

Infelizmente, é comum assistirmos à inversão desse ônus na prática forense. Advogados criminalistas se veem constantemente em situações onde a defesa é instada a “provar” a inocência de seus clientes, como se o silêncio do acusado, a ausência de álibi ou a fragilidade de sua versão justificassem uma condenação.

Essa inversão é extremamente perigosa, pois transforma o processo penal em um instrumento inquisitório, no qual o réu já inicia em desvantagem, lutando contra uma culpa presumida — não mais pela lei, mas pelo senso comum e por discursos punitivistas.

3. Prisões Provisórias e Antecipação da Pena

Talvez o maior ataque à presunção de inocência nos últimos anos tenha sido a discussão em torno da execução antecipada da pena após condenação em segunda instância.

Apesar da jurisprudência do STF ter oscilado, a decisão recente — que reafirma a exigência do trânsito em julgado para o início do cumprimento da pena — foi uma vitória do texto constitucional. Ainda assim, na prática, as prisões preventivas continuam sendo utilizadas como forma de punição antecipada, muitas vezes sem a devida fundamentação legal.

Prende-se sob o argumento de “garantia da ordem pública”, mas na realidade, o que se vê é a tentativa de satisfazer uma demanda por resposta penal imediata, ignorando os requisitos legais da prisão cautelar. Nesses casos, a prisão não é um instrumento excepcional de proteção social, mas um substituto informal da sentença penal condenatória.

4. O Papel da Mídia e o Julgamento Social

A presunção de inocência também sofre quando o réu é exposto à opinião pública de forma sensacionalista. A espetacularização da investigação criminal, a cobertura enviesada da mídia e o uso político de operações policiais produzem um efeito devastador: a condenação pública antes da condenação jurídica.

Esse fenômeno corrói a imparcialidade dos julgamentos, pressiona magistrados e deslegitima o trabalho da defesa técnica. Julgar sob os holofotes é incompatível com o devido processo legal. A Justiça, para ser justa, precisa ser calma, técnica e equilibrada — não movida pela histeria coletiva.

5. Garantias não são privilégios

Por fim, é preciso desfazer o mito de que a presunção de inocência é uma "brecha" para criminosos escaparem da Justiça. Garantias processuais não são privilégios de culpados, mas escudos para proteger inocentes. E, até que a culpa seja comprovada de forma definitiva, todos devem ser tratados como inocentes — não apenas no papel, mas na prática, nas instituições e na sociedade.

Conclusão

A presunção de inocência não é um obstáculo à Justiça, mas uma condição essencial para que a Justiça seja justa. Em tempos de crise institucional, polarização política e desinformação jurídica, defender esse princípio é um ato de coragem e de compromisso com a democracia.

Como advogados criminalistas, nossa missão é lembrar — todos os dias — que a liberdade não é um detalhe, mas a regra. E que, sem presunção de inocência, o processo penal se torna apenas um ritual para confirmar culpabilidades previamente estabelecidas, à margem da legalidade.

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